![]() |
Representação de Bertha, ilustrada por F. H. Townsend, responsável pelas ilustrações da segunda edição de Jane Eyre, em 1897. |
Os tropos do terror são interessantes. Eles servem, se aplicados aos seus contextos, para identificar e discutir estereótipos presentes na sociedade. As escolhas tomadas por diretores e escritores dizem muito sobre o período em que estão inseridos, a sociedade, a cultura.
Muitos conhecem o tropo da final girl, da dama em perigo, do personagem negro que morre primeiro, entre tantos outros, com maiores ou menores graus de periculosidade a se seguir. Todos eles apontam para preconceitos e ideias que são predominantes de grupos que detém os poderes de narrativas e que querem contar certo tipo de história.
Dois tropos me chamam bastante atenção, e não estão presentes somente no gênero do terror, e nem nasceu dele: a louca no sótão e a dama no porão.
Um dos principais exemplos de "madwoman in the attic", ou a louca no sótão, é a personagem de Bertha em Jane Eyre. Escrito por Charlotte Brontê, Jane Eyre conta a história da personagem título, que vive uma série de desventuras até se apaixonar por um homem rico, Mr. Rochester. Ambos estavam prontos para se casarem, tudo muito bonito. A questão é que Mr. Rochester já era casado, e escondia Bertha no sótão, cuidada por uma senhora que não podia contar o que se escondia lá em cima. As únicas pessoas que conheciam o segredo eram ela, o Rochester e o irmão de Bertha. Rochester havia se casado com Bertha, uma moça caribenha "de sangue quente", e a levado para Londres. Mas era uma paixão fogosa, ele não pensou muito bem, foi tudo arranjado, ele amava mesmo era a doce Jane, então tudo bem, né?
Ao mesmo tempo que existe a louca no sótão, nós temos também a dama no porão. É quase igual a dama em perigo, mas difere em alguns pontos. Uma moça muito bonita, mantida "a salvo" em um porão. Uma versão atual da dama na torre, talvez. A diferença é que aqui a mulher acaba tendo que lutar para se ver livre dessa situação, não exatamente esperando alguém vir salvá-la. Exemplos da "bunker woman" podem ser vistos em Rua Cloverfield, 10 e O Homem nas Trevas. Em ambos os casos a personagem é mantida presa, seja para fazer companhia seja por motivos mais absurdos.
Em ambos os casos, também, é uma forma de manter mulheres presas sob argumentos diversos. No caso da madwomen in the attic, passou a ser usado também por personagens que possuíssem qualquer tipo de deficiências, e precisavam ser mantidos longe dos olhos da "sociedade", como acontece em Phenomena, do Dario Argento. No caso da bunker woman, o problema mora no fato de tamanha semelhança que ela possui com a dama em perigo: é sujeitar uma personagem feminina a estar presa e ter que lutar pela sobrevivência, muitas vezes enquanto um homem espera para poder fazer o que quiser a partir dalí.
Ambos esses tropos são difíceis de engolir e sabemos bem o que eles significam: silenciamento, principalmente. Além de demonstração de domínio e o fato de se tratar de pessoas sendo mantidas em cativeiros.
Mas existem opções de subversão desses tropos. Em Vasto Mar de Sargaços, escrito em 1966 por Jean Rhys, a autora procura dar voz a essa mulher ignorada e mantida longe da sociedade londrina fina da época. Bertha, ou Antoinette, personagem de Jane Eyre, foi mantida no sótão por um motivo que sabemos muito bem: ela não era branca, não era de Londres, seus sentimentos e a forma diferente que vivia nas ilhas caribenhas não eram bem vistos por aquele que alegava a amar, a tirou de sua casa para transformá-la em uma mulher vivendo em um sótão. O trabalho de Rhys faz justiça com uma personagem que se tornou símbolo de uma sociedade que prefere esconder suas mulheres com qualquer tipo de problema do que apresentar saídas e tratamentos. Esconder essas mulheres é uma forma de não ter que lidar com elas. Ou, ainda, lidar da forma que for melhor, no momento que for melhor, para aqueles que estão sobre o controle das mesmas.
Vasto Mar de Sargaços foi publicado no Brasil pela editora Rocco, com tradução de Léa Viveiros de Castro, e é uma obra excelente para repensarmos como a colonização aconteceu, como as narrativas se deram e continuam se dando, inclusive no caso dos tropos que são utilizados, por exemplo, no terror.
Todas as obras são produzidas dentro de certos conceitos culturais e sociais. Discutir e criticar esses contextos, inclusive, é uma das formas de compreendermos noções que se perpetuaram e que não deveriam ter sobrevivido. Não significa, portanto, que as obras percam todo o seu valor, mas que assumem outras nuances que devem ser observadas. Ainda sou uma grande fã de Jane Eyre, considero um livro incrível e gosto muitíssimo das Brontë, mas não podemos deixar de encarar certos detalhes da realidade daquele período, e discuti-los, para que eles parem de ser reutilizados.
Compre os livros:
- Vasto Mar de Sargaços: Edição Física
- Jane Eyre: Edição Física | Kindle
- Madwoman in the Attic - The Woman Writer and the Nineteenth-Century Literary Imagination: Kindle

Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários educados são sempre bem recebidos!
Mas não aceito nem tolero ofensas, comentários impossíveis de compreender, spams e qualquer tipo de intolerância.
Os comentários são moderados, por isso aguarde a aprovação!